domingo, 17 de julho de 2011

Antes que a vida acabe


Dois velhinhos contemplavam o crepúsculo em silêncio, um ao lado do outro. Arthur era um octogenário, carregava nos olhos um misto de sabedoria e ingenuidade, sua geração estava muito distante da que ele então vivia. Por outro lado, seu companheiro Miguel, uma década mais novo, traduzia em seu olhar a malandragem de uma vida despreocupada, mas que o tempo fez solitária.

Enquanto o Sol procurava seu descanso, Arthur escrevia algumas linhas num pedaço de papel. Olhava para o pôr-do-sol, refletia, balbuciava algo e escrevia. Miguel que o observava, e neste ponto o horizonte não era mais o foco de sua atenção, acomodou-se melhor naquela cadeira de praia que já começava a cansar os braços sendo carregada até o parque onde costumava jogar suas partidas de xadrez com Arthur. Todas muito breves, Arthur era uma espécie de Kasparov do lugar.

- O que você tanto escreve, meu caro amigo? – indagou Miguel não se aguentando mais de curiosidade.

- Sinceramente não sei, seu enrugado intrometido. Não faça essa cara, estou brincando. Como pode ver pelas minhas bochechas, não sou mais um mocinho esbanjando saúde, embora ainda pense que posso correr mais do que você de bicicleta. Não ria, é verdade. O fato é que o fim de minha vida tem se tornado um pensamento constante. Não com pesar, mas com aspirações. Não sei a razão. Escrevi besteiras, apenas.

- Dê-me aqui, quero ler! E apenas para constar, se você sair de moto, eu chego primeiro de bicicleta.

- Você não ia querer ler, não tem nada de relevante e...

- Passa isso logo velho! – interrompeu Miguel tomando o papel das mãos do amigo demonstrando como que, na velhice, alguns anos são traduzidos na diferença de reflexos.

- Já que você foi educado, não tenho objeções. – redargüiu Arthur sorrindo.

Miguel desdobrou o papel e começou a transitar por alguns versos que, de certa maneira, soavam como juvenis, uma inocente transcrição de consciência. As linhas eram essas:

Lista de Desejos

Queria brincar de dizer mentiras
Porque a verdade me assombra.
Queria falar de coisas bonitas
Sem que o mal fizesse sombra.
Queria dizer que vale a pena
Mas não sei se é verdade.
Queria que a vida fosse uma cena
Com atores sem vaidade.
Queria poder realmente sorrir
Sem brincar de mentirinhas.
Queria fazer minha barriga doer
Mas que fosse de tão feliz.
Queria que nada viesse roer
Algum bem que um dia fiz.
Queria não ter que falar disso
Mas é só disso que pouco sei.
Queria não querer tanto
Na vida pouco brinquei.
Queria voltar a ser criança
E exibir um sorriso largo.
Queria ainda ter esperança
De testemunhar grandes abraços.
Queria não querer tanto
Querer fazer tudo que faço.

Queria ser uma canção no rádio
Numa estação que toca amor.
Queria ser música de primavera
E respirar por uma flor.
Queria ser uma grande janela
E de um pranto sentir calor.

Queria não querer tanto
Estes meus olhos insurretos.

Queria muito não querê-los
Para não querer tudo que quero.

Arthur, percebendo a reação do amigo ao terminar a leitura, encostou com os dedos em sua perna para trazer sua atenção novamente para a conversa. A cabeça baixa que então deixava aparecer apenas uma testa franzida revelou, ao se levantar, um olhar de inquietação, um Miguel um pouco menos malandro do que o de minutos antes, se assim é certo dizer.

- O que foi Miguel, não te agradou? Eu disse que não era nada relevante e...

- Com sinceridade? – mais uma vez Miguel interrompia Arthur.

- Apenas com ela meu caro amigo.

- Queria não querer ter lido isto.

- Por qual razão? – perguntou Arthur com um olhar perdido.

- Porque agora queria ser meio século mais novo e fazer tudo um pouco diferente. Parece-me que passei a vida inteira querendo tudo que podia querer, mas nunca desejei o que deveria desejar. O que você acha?

- Acho que deveria querer algo melhor daqui pra frente, ainda há tempo. Acho que deveríamos jogar xadrez, talvez eu queira deixar você ganhar...

2 comentários:

  1. Uma vez, num desses caminhos de blogs da vida, eu conheci um Hudson Roati... mas, não me lembro bem por que, eu deixei de conhecê-lo e aii por alguma coisa que vc pode chamar de coincidência, eu vim parar nesse blog e li este texto que me fez pensar: será que eu quero somente o que posso querer?
    Valeu a pena passar por aqui... você fez falta!

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  2. Eu devia ser profeta de um mundo gentil.

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